REQUIÃO: “CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE ATENTAM CONTRA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CIDADÃOS”
ABUSO DE AUTORIDADE – TÓPICOS para estudo
Roberto Requião – Relator
O abuso de autoridade é ato ilícito, repreendido nas esferas penal, civil e administrativa, por meio do qual um agente público ou pessoa investida em função pública, valendo-se desta posição, atua dolosamente em excesso de poder ou desvio de finalidade e, desse modo, atenta contra os direitos subjetivos de outrem.
Um aspecto importante que distingue o abuso de autoridade de outros crimes praticados por funcionários públicos (lato sensu) é justamente o bem jurídico violado.
Enquanto nos crimes praticados contra a Administração ou contra a Administração da Justiça o bem jurídico protegido, em geral, é a tutela dos interesses do Estado, nos crimes de abuso de autoridade o bem jurídico é constituído pelos direitos fundamentais dos cidadãos afetados.
Com efeito, agregada à noção de proibição do abuso de autoridade está a proteção da liberdade, da integridade física e psicológica e de outros direitos fundamentais dos cidadãos que se encontram em uma relação particular de sujeição diante do Poder Público.
Assim, enquanto certos delitos (que, sem embargo, também decorrem de prática de atos abusivos por agentes públicos, de modo genérico) como a corrupção ou o peculato estão voltados à proteção do patrimônio estatal, os crimes referidos na lei do abuso de autoridade voltam-se especialmente contra os excessos da atuação estatal face ao cidadão.
Daí a sua importância: a prevenção aos abusos de autoridade constitui um dever essencial do Poder Público em vista da garantia da máxima efetividade dos direitos fundamentais, especialmente em países, como o Brasil, em que a tradição de respeito aos direitos fundamentais ainda não está solidamente firmada na tradição da comunidade política.
A relação de sujeição entre cidadão e Estado se exibe com maior força – e, portanto, desperta as maiores cautelas – no direito sancionatório e, em particular, no direito penal.
Por essa razão, não faria nenhum sentido a existência de uma lei que instituísse um regime próprio de punição ao abuso de autoridade e que, no entanto, não buscasse coibir os excessos e desvios de atuação que ocorressem no âmbito da persecução penal, inclusive aqueles praticados por magistrados judiciais e por membros do Ministério Público.
A responsabilidade de agentes públicos por crimes cometidos no exercício da função é comum no direito comparado. Com efeito, poucos ordenamentos jurídicos estrangeiros estabelecem imunidades criminais a agentes públicos, ressalvada a costumeira imunidade diplomática. Quando o fazem, em geral, reservam-na aos chefes de Estado.
Veja-se, a seguir, o regime de responsabilidade em alguns países.
Nos Estados Unidos, o Código Criminal (US Code, n. 18) prevê crimes de oficiais públicos federais em geral. Especificamente quanto ao abuso, há uma figura típica prevista no §242, relativo à privação de direitos de cidadãos, que pode ser referida ao abuso de autoridade. O delito ali definido tem aplicabilidade inclusive a magistrados (como, por exemplo, no caso United States v. Roberto C. Nalley, em que um juiz foi condenado por determinar uso imoderado de força contra uma parte durante uma audiência judicial, mediante aplicação de choque elétrico).
A responsabilidade disciplinar dos juízes é prevista de acordo com a lei estadual, no caso dos juízes estaduais. Os juízes federais americanos somente podem ser removidos do ofício (demitidos) pela via do impeachment, sempre perante o Congresso, independentemente da instância de atuação do magistrado, em consequência da ausência de previsão legal de outras formas de demissão.
Com relação aos membros do Ministério Público, a situação é bastante diversa. Os U.S Attorneys (responsáveis pela atividade de persecução penal federal e de defesa da União, similar ao Ministério Público Federal do Brasil pré-1988) são nomeados para um mandato de quatro anos, mas servem ad nutum do Presidente. Desse modo, a sua dispensa pode se dar independentemente da prévia comprovação de prática de atos ilegais – bastando ao Presidente expedir o ato competente. No entanto, esses membros do Ministério Público também se sujeitam a condenação por impeachment perante o Congresso. Nos EUA, porém, tanto procuradores quanto juízes são civilmente imunes em relação aos atos de ofício¹.
Estas imunidades, no entanto, não alcançam a esfera criminal, nem a esfera de responsabilidade disciplinar.
Em Portugal, há previsão para a responsabilidade de agentes públicos pelo abuso de autoridade. O Código Penal Português, tem uma seção destinada ao abuso de autoridade dentro do capítulo que trata dos crimes cometidos no exercício de funções públicas.
Esta seção contém algumas hipóteses nominadas de abuso, e, ainda, uma hipótese genérica de abuso de poder, prevista no art. 382, como tipo subsidiário: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, e punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
O Código Penal Português, ao optar pela formulação genérica, substituiu a antiga codificação que, de forma mais próxima à do Brasil, previa diversas condutas específicas de abusos de autoridade contra particulares, como ‘prisão ilegal’, ‘rigor ilegítimo para os presos’, etc.
Contudo, diversas previsões esparsas de modalidades de abuso de poder de funcionários públicos ainda estão previstas na legislação lusitana, definidas em delitos gerais como qualificadoras ou causas de aumento de pena.
De forma semelhante, o Código Penal Espanhol prevê tipos genéricos de abuso de autoridade, sob o nomen iuris ‘prevaricación’, para os atos de funcionários públicos (art. 404) e de juízes (arts. 446 e 447).
A previsão do Código espanhol é uma das mais severas em relação à magistratura, na medida em que adota um tipo aberto de crime doloso, sob a fórmula de prolatar, com conhecimento, “sentença injusta”. Leia-se:
El Juez, o Magistrado que, a sabiendas, dictare sentencia o resolución injusta sera castigado:
1º Com la pena de prisión de uno a cuatro años si se trata de sentencia injusta contra el reo em causa criminal por delito y la sentencia no hubiera lhegado a ejecutarse, y com la misma pena em su mitad superior y multa de doce a veinticuatro meses si se há ejecutado. En ambos casos se impondrá, además, la pena de inhabilitación absoluta por tempo de 10 a veinte años.
2º Com la pena de multa de seis a doce meses e inhabilitación especial para empleo o cargo público por tempo de seis a 10 años, si se tratara de uma sentencia injusta contra el reo dictada em processo por falta.
Importa destacar que o Código Espanhol foi elaborado em 1995, já na plenitude do regime democrático na Espanha, e substancialmente modificado em 2010. Desse modo, a abrangência do tipo aberto em relação à prevaricação judicial seguramente não deve ser atribuída ao autoritarismo de regimes anteriores.
O Código Penal Francês, por sua vez, consagra uma longa seção à punição de condutas de abuso de autoridade de agentes públicos contra particulares, dos arts. 432-4 a 432-9. Ali estão narrados e tipificados os delitos de prática ou ordem de ato atentatório à liberdade individual, de abstenção de determinar a cessação de ato atentatório à liberdade individual, de prolongamento indevido de prisão, bem assim estão vedados atos que atentem contra a inviolabilidade do domicílio, contra a atividade econômica lícita, contra o sigilo de correspondência.
O Código Penal Alemão, em sua seção Trigésima, traz diversas disposições de repressão a formas de abuso de autoridade. Na Lei tedesca, surge de forma destacada a tipificação dos delitos de violência na obtenção de declaração (forma de tortura), bem como dos crimes de persecução penal injusta e de execução penal injusta, quando o agente público se dirige em face de quem sabe inocente (§§ 343-345), e que podem ter por destinatários tanto membros do Ministério Público quanto magistrados judiciais.
Essa breve revisão da legislação penal comparada em matéria de abuso de autoridade permite entrever alguns aspectos relevantes.
Primeiramente, o regime de responsabilização criminal de agentes públicos por atos cometidos contra o interesse dos cidadãos, valendo-se do cargo, pode se dar tanto por meio de tipos sintéticos e abertos (o denominado abuso de poder inominado), em geral subsidiários de previsões específicas, quando pode ser veiculado por meio de uma série de delitos específicos e mais cerrados (caso da legislação brasileira sobre o abuso de autoridade).
Em segundo lugar, importa ressaltar que o processamento e a condenação administrativa e criminal de agentes públicos, inclusive de magistrados e de procuradores, que atuam dolosamente em abuso de seu ofício e em prejuízo do cidadão é a regra nas democracias ocidentais. São raros os casos de imunidade judicial ou ministerial à responsabilização judicial, especialmente nos campos pena e administrativo.
Assim, a tese de que os atos de ofício (como as sentenças judiciais ou a atividade de persecução penal levada a efeito pelo Ministério Público) não podem ser submetidos à investigação e processamento judicial em caso de abuso não parece encontrar ressonância na legislação dos países que mais influenciam a comunidade jurídica brasileira.
Por outro lado, alguns dos países examinados, e em especial a legislação espanhola referida, consagram tipos significativamente mais abertos do que os que, nesse momento, são propostos no Projeto de Lei do Senado nº 280, de 2016, que, vale lembrar, é produto do Pacto Republicano previsto por Comissão composta por representantes dos Três Poderes.
Não tem procedência o receio veiculado por associações de classe de magistrados e de membros do Ministério Público no sentido de que a nova lei de abuso de autoridade, uma vez aprovada no Brasil, poderia servir de instrumento de retaliação ou perseguição política de agentes envolvidos na persecução penal.
Registre-se que a proposta mantém a competência exclusivamente judicial para a apuração destes delitos, no que tange à responsabilização de natureza penal. Assim, somente pelo acórdão de um colegiado de juízes integrantes de um tribunal (haja vista a prerrogativa de foro consagrada a estas categorias profissionais) é que um magistrado ou membro do MP poderia ser condenado por tais delitos.
Por outro lado, o regime de imunidade formal dos membros do Ministério Público, especialmente dos ramos do Ministério Público da União, é de tal monta protetivo que somente com prévia autorização do Procurador-Geral da República (por meio de ato de designação previsto em lei) é que sequer poderá ser investigado um procurador do MPU (art. 18, parágrafo único, da Lei Complementar 75/93).
Reitere-se o fato de que não se está a tratar de comunicação para prisão ou possibilidade de suspensão em fase processual (como é deferido às Casas Parlamentares). No caso do MPU, a vontade do chefe da carreira é determinante para que sequer prossigam meras investigações iniciais contra qualquer de seus integrantes.
Dessa forma, é ilusório supor que o projeto de lei que trata de abuso de autoridade – aliás, alinhado e compatível com o que está sendo produzido em diversos outros países – possa por em risco a atividade de juízes ou de procuradores, que já são dotados de diversas garantias que asseguram a sua independência e segurança profissional, mas que não podem estar em um regime de irresponsabilidade, incompatível com a Constituição da República, que não se compraz com imunidades absolutas.