O senador Requião foi um dos conferencistas da XI Cúpula das Cidades e falou, nesta quinta-feira (24), sobre sua experiência como prefeito de Curitiba, além de relacionar a crise urbana latino-americana com a crise econômica internacional no seminário “Diálogo Dos Governos Nacionais, Subnacionais e Legisladores: País Uma Agenda Para Cidades”.
Discurso
Henri Lefbvre, o filósofo da construção do espaço urbano e do direito à cidade, resumia os conceitos de estrutura, função e forma dizendo que a cidade deveria ser como a concha que veste o caracol, que lhe dá abrigo, aconchego, conforto e segurança.
Enfim, as cidades deveriam ser estruturas de morar, de se viver e conviver, de produzir e trabalhar, do ócio e do entretenimento, da criação e da cultura, da busca felicidade e da realização pessoal.
Foi o que, de certa forma, os ingleses pretenderam com as New Towns, ao reconstruírem suas cidades depois dos bombardeios da
Segunda Guerra Mundial. Espaços urbanos ou máquinas urbanas não apenas direcionadas ao trabalho ou ao descanso do trabalho e sim ao conjunto das demandas do ser humano.
As cidades como espaço da fraternidade e da solidariedade. A cidade da esquina e do amigo da esquina. A cidade do encontro, da praça, da vizinhança, das amizades. A cidade onde os filhos crescem, relacionam-se, identificam-se, fazem descobertas e se desenvolvem.
As cidades não podem se constituir em espaços impessoais, frios que não propiciem às pessoas viver a sua ventura de vida, seus sonhos, seus projetos. As cidades como um meio de integração de seus habitantes ao processo civilizatório.
Quer dizer, tudo o que Henri Lefbreve e os teóricos do novo humanismo pensaram e projetaram, tudo o que os ingleses imaginaram poder construir, a partir dos escombros das V-2, todas as ideias legadas por Arturo Sória e a sua cidade linear que, entre outras, inspirou Brasília, todos esses belos projetos, evidentemente, não cabem em nossas megalópoles de hoje.
Mesmo que seja um gramsciano ao contemplar esse nosso mundo tão conturbado; isto é, ainda que seja pessimista na análise, na razão, mas otimista na ação, na vontade, é preciso inesgotável otimismo para imaginar que as nossas megalópoles, essas monstruosidades urbanas que se espalham infecciosamente mundo afora, sejam reformáveis.
Mas, como dizia McLhuan: quem quiser ser universal que cante a sua aldeia. Vou, assim, falar rapidamente sobre minha experiência como prefeito da cidade de Curitiba, capital de meu estado, o Paraná.
Por longo tempo, durante os 21 anos de regime militar, as capitais estaduais brasileiras foram impedidas de elegerem seus prefeitos. Eles eram nomeados pelo general que ocupasse naquele momento o comando do país.
Com o fim da ditadura, em 1985, fui o primeiro prefeito eleito diretamente pelo povo de minha cidade de Curitiba. As administrações indicadas pelos militares tinham contas a prestar aos militares e às classes dominantes, não ao povo da cidade.
Daí que, depois desses de 20 anos de governo autocrático, as carências, as privações especialmente dos mais pobres eram imensas.
O povo era invisível, assim como a sua vida, aspirações e carências. Quando muito, havia uma preocupação com o transporte, com o planejamento das vias de transporte.
Afinal era preciso levar os trabalhadores e os empregados domésticos às fábricas, às residências, ao comércio, aos escritórios, ao centro econômico e político da cidade.
O contraste entre o pequeno núcleo urbano atendido por serviços da saúde, por escolas, segurança pública, saneamento, iluminação, ruas pavimentadas, repartições públicas, parques e praças e a periferia cujo “equipamento urbano” mais comum era uma valeta de esgoto a céu aberto em frente das sub habitações, marcava décadas, séculos de exclusão.
Tida como referência de planejamento urbano em várias partes do mundo, essa Curitiba que passo a administrar a partir de 1986 escondia em seu lado escuro uma estatística pouco glamorosa: uma das capitais brasileiras com o maior número de sub habitações em relação ao seu número de habitantes; tínhamos, por exemplo, mais favelados que a cidade de São Paulo.
Inspirado em Lefbreve, nas ideias de Soria, nas News towns, nas administrações comunistas de Roma, Milão, Bolonha, Gênova e outras cidades italianas, em experiências bem-sucedidas em Paris, Barcelona busquei aproximar Curitiba de sua realidade.
Minha consigna era: rico não precisa de prefeito; rico vive bem em Curitiba, Paris, Roma ou Nova York.
Quem precisa de prefeito é quem sacoleja horas em transporte superlotado, desconfortável e caro; é quem mora em bairros insalubres e habitações desumanas; são as mães que não têm creches onde deixar os filhos; são os trabalhadores sem assistência à saúde e desassistidos de qualquer serviço urbano.
Busquei então sanear os bairros. Montei uma fábrica pública de manilhas para canalização de esgotos, distribuindo esses equipamentos gratuitamente para a população. Dita e redita, cantada em prosa e verso como referência de inovações urbanas, Curitiba não oferecia sequer trinta por cento de esgoto e de água tratados para a sua população.
Na periferia, as principais causas da mortalidade infantil eram as doenças infectocontagiosas provocadas pela falta de saneamento básico.
Iniciei um programa de construção de creches, inaugurando uma nova unidade por semana, tamanha era a deficiência acumulada; implantei escolas integrais nos bairros mais pobres.
Levei os postos de saúde e o sistema de atendimento à saúde pública aos bairros; criei as unidades de atendimento 24 horas.
Pus em movimento um amplo programa de construção de casas populares; regularizei, urbanizei e saneei milhares de lotes de ocupações urbanas, titulando a terra tomada pelos sem-teto dos especuladores imobiliários.
O movimento pela moradia foi respeitado, ouvido e atendido.
Estabeleci os mercados populares de alimentos, levando aos bairros alimentos saudáveis e baratos, adquiridos de pequenos produtores metropolitanos.
A gestão da cidade foi descentralizada, com a criação das Administrações Regionais.
Em vez da cidade autocrática, centralizadora, buscamos a polinuclearização; e, sob essa filosofia, buscamos integrar toda a região metropolitana de Curitiba e suas dezenas de núcleos urbanos.
Fizemos do transporte coletivo uma ferramenta preciosa e imprescindível para enraizar essa nova visão de cidade.
O transporte urbano sempre foi um parceiro fiel da especulação imobiliária e da expansão desordenada da periferia, fazendo avançar os bairros sobre os mananciais, os rios, as matas, as reservas.
A Zenith de George Babbitt, a genial criação de Sinclair Lewis, não é uma particularidade norte-americana. É o resultado universal da urbanização capitalista.
Busquei, então, fazer com que a cidade controlasse o transporte coletivo e não o contrário. Criei um a frota pública que servia com o parâmetro para a fixação de tarifas, das linhas e da qualidade do serviço. Estabeleci a tarifa única e promovi a integração metropolitana de transporte de massa.
Paris e seus eixos de transportes serviram-nos também como inspiração.
É um rápido resumo do que foi a nossa administração e a dura briga para devolver a cidade ao seu povo.
Às vezes bem, às vezes mal, Curitiba buscou, desde a segunda metade da década 80, seguir esse caminho.
Hoje, com o Brasil, como de resto as Américas e boa parte da Europa em crise, os desafios agigantam-se.
Não há solução para a crise urbana sem que se debele a crise econômica mundial. E as políticas de austeridade que a globalização financeira impõe especialmente aos países de economia mais frágil potencializam a crise urbana, espalhando o desemprego, a pobreza, a deterioração e a privatização dos serviços públicos, a concentração e a especulação financeira-imobiliária.
Se, digamos, em situação de “normalidade” a crise urbana já havia atingido um estágio limite de gravidade, depois da explosão da bolha dos derivativos, em 2008, e da imposição de ajustes ficais excessivos e criminosos, estamos flertando com o caos.
Mas, não há de ser a iniciativa privada, não hão de ser os bancos, o mercado, as grandes corporações nacionais e transnacionais, não haverá de ser Mamon a socorrer as cidades na mais grave crise de toda a história da urbe.
Quando muito, como acontece em grandes cidades brasileiras, o máximo de participação do capital é o apadrinhamento de algum logradouro público, cuidando das plantas, da grama.
Também aqui a imprescritibilidade do poder público.
Se o homem é um “zoo politicón”, com o dizia Aristóteles; isto é, um animal gregário e se estamos destinados a essa condição, apenas a soma da vontade, da energia, da sabedoria dos habitantes da polis poderá salvá-la da destruição. E salvar a polis é salvar a própria humanidade.
Deixemos os bancos, as corporações cuidarem de praças e jardins, de teatros e galerias, a patrocinarem vernissages. Cuidemos nós, os cidadãos, dos destinos de nossas cidades.